top of page
Buscar

Três porquês da irresponsabilidade que é a série Os 13 Porquês

A série é, sobretudo, irresponsável. O ato de suicídio não pode ser entendido como um evento em si, mas precisa ser compreendido como um processo complexo mais ou menos estendido em certo arco temporal e que envolve múltiplas dimensões e dinâmicas singulares e sociais. Qualquer abordagem que não abranja a complexidade desse processo é simplista e rasa.


Mais do que romantizar, a série constrói uma certa ideação em torno do ato de suicídio, que passa a ser atraente porque é apontado como a única saída possível diante de uma série de eventos, colocados em uma rede de causalidades, em que diferentes atores sociais são apresentados como culpados pela morte por suicídio da personagem principal porque, em síntese, praticam bullying. E isso é de uma irresponsabilidade imensa.


Em primeiro lugar, é irresponsável porque apresenta a morte por suicídio como uma ideia possível, como algo se fantasiar e a se considerar. Em uma perspectiva ética de afirmação da vida (e aqui sem nenhuma conotação moral, é ética no sentido espinosano mesmo), não é possível apresentar o suicídio como uma opção possível – ainda mais em um seriado que tem como público alvo adolescentes, que podem possuir escassos recursos afetivos, repertório de vida e possibilidades de leituras para situações e sofrimentos complexos que vivenciam. E a série se torna mais irresponsável porque esse ato é apresentado como a única opção, já que não haveria outras saídas. Aqui é preciso ter claro que a morte por suicídio, de certo modo, se define pela negação: é por o sujeito imaginar que não tem outras opções, supor que não dispõe de mais recursos e sentir que não é amparado por uma rede social (e outros “nãos”) que aventa essa possibilidade. Do lugar de adultos, precisamos insistir que há sim outras opções, colocando em marcha com o sujeito processos de ampliação de recursos e fortalecimento de rede social.


Em segundo lugar, é irresponsável porque assinala que há uma rede de causalidades posta, com eventos perpetrados por diferentes pessoas que são culpadas pela morte por suicídio da personagem principal. Aqui o problema é duplo, pois se o ato de suicídio é um processo complexo de múltiplas dimensões, simplesmente não é possível afirmar a existência de uma determinada rede de causalidade, já que não se trata de um evento com relação direta de causa-efeito. Nesse mesmo sentido, é irresponsável o que a série faz em cada um de seus episódios ao identificar e atribuir culpa a certas pessoas, em um ato de acusação, pela morte por suicídio da personagem principal por uma ação (ou mesmo pela omissão) que cada uma dessas pessoas realizou. Mais uma vez, a série ignora as dinâmicas relacionais e múltiplas dimensões desse processo, desconsidera todo o entrecruzamento de afetos e afecções presentes em qualquer encontro com outro no mundo e coloca uma carga enorme de responsabilidade naqueles que tem alguma relação com alguém que morreu por suicídio. Aqui a série prefere dar lugar ao tema da vingança em uma narrativa que beira afirmar a existência de um crime, do que dar lugar ao tema da importância do cuidado e da ética das relações diante de situações de sofrimento psíquico.


Em terceiro lugar, é irresponsável porque trata como bullying um conjunto de ações muito distintas. No mesmo saco entram as provocações, traições, falta de respeito, homofobia, machismo, abusos sexuais, dentre outros. Todos recebem o simples nome de bullying. Esse tipo de abordagem não ajuda nem a especificar os problemas do bullying e dar o trato correto à questão (o que é muito importante fazer) e nem dá o devido lugar para problemas extremamente sérios como a homofobia e a cultura do estupro. Ainda, a série despolitiza essas questões e passa longe de inseri-las em um debate mais amplo sobre suas estruturas e sobre como se situam em certo tecido social. E, mais uma vez, coloca para o público o ato de suicídio como uma opção plausível para lidar com o sofrimento relacionado a todos esses problemas.


A série contém diversas outras passagens de óbvia irresponsabilidade e largamente alardeadas, como apresentar diversos gatilhos sem nenhum aviso prévio e retratar metodicamente a cena de suicídio. Em suma, o modo como a série aborda o tema do suicídio viola muitas recomendações sobre como lidar com esse tema na mídia.

Não acho que é o caso de recomendar que a série não seja assistida, inclusive porque isso tende a ter um efeito contrário e, por curiosidade, um número ainda maior de pessoas se interessa. Mas, dada a popularidade dessa série talvez seja o caso de, junto a adolescentes e pessoas que se encontram mais fragilizadas, se antecipar e propor assistir aos episódios conjuntamente em um exercício de prevenção ao suicídio e de ampliação de recursos e repertórios no cotidiano. Em uma postura ativa, pautar o debate, abrir campos de diálogo para conversar sobre as emoções e projetos de vida (ou a falta deles), trocar afetos, ampliar processos de intercâmbio e refletir sobre saídas que se colocam no encontro entre muitos para as adversidades encontradas. É preciso lembrar que a saída é sempre compartilhada e coletiva.

.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Golpistas são loucos?

Essas pessoas que estão nas ruas e nos quartéis são doidas? Vamos lá, me acompanha (na mesma linguagem que está sendo utilizada para não...

 
 
 

留言


Saúde Mental Global
Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, Drogas e Desinstitucionalização 

Terapia Ocupacional - FMUSP
R. Cipotânea, 51

Cidade Universitária

São Paulo - SP, 05360-160

claudia.braga@usp.br

© 2024 by Karina Nishioka. Powered and secured by Wix

bottom of page