Sobre saúde mental e o cenário atual de vida em razão das medidas de distanciamento impostas pela Covid-19
- claudiabraga10
- 22 de mar. de 2020
- 4 min de leitura
Saúde mental se produz no corpo social. Saúde mental se produz nos encontros e com intensidade de presença. Saúde mental se produz nas relações interpessoais vividas nos espaços cotidianos e comuns da cidade.
Partindo desses saberes compartilhados e da realidade de distanciamento que se impõe, precisamos nos questionar: como podem ser colocadas em prática estratégias de prevenção e promoção de saúde mental para pessoas que estão em isolamento físico quando a saúde mental é a antítese do distanciamento? Para aquelas pessoas que já são usuárias de serviços de saúde mental, qual continuidade da atenção é possível em tempos em que medidas de afastamento são impostas e que os serviços precisam reduzir horário e recursos de cuidado? Como manter a responsabilidade pelas demandas de saúde mental de um território em tempos assim? E na situação de pessoas que antes estiveram institucionalizadas em hospitais psiquiátricos e reconquistaram a liberdade, quais diálogos e caminhos podemos formular para negociar para que não saiam das casas e residências terapêuticas por semanas e, quiçá, meses sem isso ser sentido como uma nova violência?
Para cada um desses cenários é preciso, enfim, refletir sobre como acolher a necessidade dessas medidas de distanciamento dando um sentido para o cotidiano que não seja o de isolamento, o de ausência de cuidado e o da sensação de aprisionamento.
Como muitos, tenho me colocado essas questões nas últimas semanas ao ler notícias, ao conversar com colegas que estão na linha de frente dos serviços de saúde mental e ao ver os impactos nas pessoas das medidas de isolamento físico. A construção e a sustentação de estratégias de atenção nesse novo – e espero que breve – tempo será um desafio coletivo e que vamos descobrir no processo. Tentarei nos próximos dias e semanas escrever sobre cada um desses cenários e, também, sobre algumas iniciativas em curso, que vão de ações movidas pelo senso comum às iniciativas individuais de profissionais com oferta de atendimento psi, que vão de arranjos locais de funcionamento de serviços estratégicos de saúde mental às propostas pela OMS no âmbito da saúde mental, e por aí vai.
A ideia é pensar junto. É tudo novo para todos. Fica o convite para quem quiser compartilhar pensamentos e experiências.
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Começando pelo que deveria ser óbvio: a prevenção e a promoção de saúde mental não é e não tem nada a ver com esse boom de atividades propostas para se fazer enquanto se está em isolamento.
Nessa última semana foram muitas as iniciativas de tantas instituições, empresas e famosos em disponibilizar cursos online, promover vídeos ao vivo com shows, oferecer aulas de Yoga, aulas de francês e por aí vai. Essas atividades são mero entretenimento e respondem à necessidades artificiais; são atividades que, no contexto de isolamento físico e interrupção da vida cotidiana, até podem ser divertidas para alguns de certa classe social, mas em grande medida são desenvolvidas com a finalidade de ocupar um vazio – um vazio de trocas, um vazio de projetualidades, um vazio de sentidos.
Inclusive, quem exatamente tem condições concretas de acessar e usufruir de cursos online? Quantas pessoas têm acesso à internet em casa? Quantos mesmos têm uma casa para morar? Para que fazer aulas de yoga quando não se sabe sequer se haverá comida naquele dia?
Como ponto de partida tomo esse exemplo do que evidentemente não pode ser entendido como uma prática de prevenção e promoção de saúde mental porque, por oposição, ele indica o caminho para pensar o que saúde mental demanda: ora, o que é preciso nesse momento é identificar e compreender as necessidades reais das pessoas em seus contextos de vida, produzindo respostas concretas a essas.
Não é necessário aprender a fazer yoga em um mês, mas é necessário ter uma casa digna para morar durante um mês. Não é necessário fazer curso de francês, mas é necessário manter amigos e uma rede social ativa, é necessário ser escutado e trocar afetos. É completamente dispensável assistir artistas cantando 'Imagine', mas é indispensável ter renda e garantia de renda para poder comer. É preciso, também, compreender as emoções das pessoas nessa situação de adversidade e oferecer caminhos de cuidado: diante do medo, construir possibilidade de esperança; diante da incerteza, criar laços de confiança e segurança; diante da tendência à tomada de atitudes orientadas à benefícios individuais, pensar em propostas coletivas e solidárias.
Quais estratégias podemos formular a partir dos coletivos e da realidade atual dos serviços de saúde para atender às necessidades reais das pessoas cuidando da saúde mental? O que pode ser feito? Como cobraremos o poder público para que ofereça as respostas que cabe ao Estado oferecer?
Alias, considerando esta presente disposição de empresas e famosos em fazer algo, seria melhor e mais eficiente para prevenção e promoção da saúde mental se, ao invés de cursos diversos, sinais de TV abertos e vídeos em redes sociais, tais empresários e famosos que são 1% da população mais rica doassem (ou tivessem taxada) parte de sua fortuna para financiar melhores condições de trabalho para os profissionais de saúde, comprar insumos básicos de higiene para as pessoas que não dispõe de condições financeiras, e oferecer cestas básicas para famílias em condições de vulnerabilidade, dentre tantas outras necessidades reais que, essas sim, se respondidas, podem favorecer a saúde mental das pessoas nesses tempos adversos.
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Saúde mental se produz no corpo social.
O desafio que se coloca hoje é como fazer com que distanciamento físico não signifique indisponibilidade de presença e miséria de relações, como dotar de sentido esta situação e construir novos valores e afetos orientados pela solidariedade, como reduzir ações de serviços sem se desresponsabilizar pelas demandas de saúde mental de um território, como expandir a vida comum de uma cidade para dentro de casa, e como garantir que a cidade cuide das pessoas mais vulneráveis.
Baita desafio que teremos pelas próximas semanas.
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