Saúde mental e os riscos de certa cultura 'psi' - respostas no contexto de pandemia
- claudiabraga10
- 23 de mar. de 2020
- 3 min de leitura
Sobre saúde mental e as iniciativas individuais de profissionais com oferta de atendimento psi.
Muitos profissionais que trabalham no campo da saúde mental se disponibilizaram a conversar com pessoas que precisam de escuta neste momento e ofereceram atendimentos gratuitos. Do que tenho visto, uma parte dos profissionais não especifica quem pode acessar este canal de comunicação, enquanto outra parte oferece atendimento especificamente para profissionais de saúde.
Antes de mais nada, como é importante e necessária esta rede de solidariedade! Para mitigar a curva de contágio pelo vírus, precisamos nos contagiar por afeto e solidariedade. Este contágio, sim, é preciso e desejável.
Agora, qual o sentido que vamos dar para essas ações?
Entendo que precisamos nos debruçar sobre três questões:
1. Importância de organização coletiva e mediada no lugar de ação individual.
2. Reconhecimento de que não são só os profissionais de saúde que estão na linha de frente.
3. Atenção ao risco de ‘psicologização’.
1. Importância de organização coletiva e mediada no lugar de ação individual.
Reitero: que belo e que importante a disponibilidade individual de profissionais da saúde mental de diferentes campos de formação para escuta e acolhimento neste momento.
Agora, para que esta possibilidade de cuidado chegue a um maior número de pessoas é preciso ir além de iniciativas individuais. E é também relevante garantir que diretrizes comuns e éticas sejam estabelecidas para esta ação, o que só é possível em uma organização coletiva ou com mediação de estruturas institucionais. O risco de não haver nenhuma mediação com orientação para a população sobre quem acessar e como acessar esta possibilidade de cuidado é o de não democratizar o acesso ao cuidado e o de abrir caminho para que pessoas quaisquer se coloquem neste lugar de escuta, oferecendo conselhos e orientações desastrosas no lugar de acolhimento.
A situação é relativamente simples de resolver. Os conselhos profissionais têm mandato para ocupar este lugar institucional de mediação – e alguns já estão se organizando para isso. Para os trabalhadores da saúde mental que estão se disponibilizando para estas formas de cuidado, vale a pena consultar seu conselho de classe e participar de uma organização coletiva.
2. Reconhecimento de que não são só os profissionais de saúde que estão na linha de frente.
Muitos têm ofertado atendimento para os profissionais da saúde. Compreensível, pois estes profissionais tiveram suas rotinas de trabalho viradas de ponta cabeça, já estão trabalhando sob enorme pressão, com grande responsabilidade e sem condições decentes de trabalho. A falta de máscaras e outros Equipamentos de Proteção Individual é já uma realidade. Ainda, como todas as outras pessoas, estão preocupados com sua saúde e com as das pessoas que convivem. Por isso tudo, compreensível.
Mas vale lembrar que há outros grupos de profissionais que, também, estão na linha de frente e sob difíceis condições de trabalho: caixas de supermercado, equipes de limpeza e garis, entregadores de comida e outros produtos, seguranças... Há outros grupos de profissionais que, também, têm que lidar diariamente com pessoas possivelmente contagiadas, que têm péssimas condições de trabalho, que têm que pegar transporte público para chegar ao trabalho e que vivem a angústia da necessidade de trabalhar para ter renda no final do mês enquanto preferiam estar em casa com seus familiares.
É preciso refletir por quais motivos essas pessoas não estão sendo incluídas como grupos de trabalhadores da linha de frente que também demandam cuidados de saúde mental (sim, a resposta é óbvia).
E é preciso mudar isso.
3. Atenção ao risco de ‘psicologização’.
O campo da saúde mental soube fazer bem a crítica da ‘psiquiatrização’. É preciso tomar como referência esta crítica e analisar o risco de ‘psicologização’.
A reforma psiquiátrica nos ensinou que as respostas às necessidades e sofrimentos das pessoas estão para além do campo psi. Os saberes e práticas produzidos no campo psi circunscrevem as singulares formas de expressão de cada um diante de uma situação e em um certo contexto nas chaves de leitura do próprio campo. Em uma ação limitada ao campo psi, o modo como o outro se expressa é decodificado dentro dos códigos produzidos neste campo e, com isso, as respostas produzidas serão também de acordo com esses códigos. Escuta e acolhimento são importantes, claro. Mas juntamente com uma postura afetiva é preciso uma atitude crítica para reconhecer que as necessidades das pessoas expressas em situações como essa estão muito além do que pode ser ofertado nos códigos ‘psi’. Sem essa atitude crítica corre-se sério risco de ‘psicologização’.
Seguramente uma resposta mais interessante será aquela que ampliará a noção de saúde mental e articulará com essa importante iniciativa de tantos profissionais outras redes de solidariedade de outros campos.
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