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Pelo fim dos manicômios

Nessa semana tivemos uma importante conquista da reforma psiquiátrica. Do manicômio de Vassouras, RJ, saíram as últimas pessoas que estavam institucionalizadas para viver em Serviços Residenciais Terapêuticos e fechamos, finalmente, o hospital psiquiátrico Cananeia por fora. Mais tantas pessoas em liberdade e morando em casas. Um manicômio a menos! Que alívio e que alegria por isso! Um respiro em meio à tristeza e um esforço conjunto entre muitos atores e instituições e que tem raízes na história de tudo o que a reforma psiquiátrica já produziu.


Para lembrar a importância das ações que vão se somando, conto que um dos pontapé iniciais para o fechamento desta instituição foi a Inspeção Nacional de Hospitais Psiquiátricos, em dezembro de 2018, quando, mais uma vez, as condições de violação de direitos humanos ocorridas lá foram divulgadas. Essa situação já vinha sendo acompanhada atentamente pela SES RJ, buscando fomentar a desinstitucionalização em todo o Estado.


Nesse cenário, em outubro de 2019 coordenei, pelo Ministério Público, a avaliação desse hospital psiquiátrico a partir da perspectiva dos direitos humanos. Analisamos documentos, trabalhamos com observação e entrevistamos muitas e muitas pessoas que estavam institucionalizadas e profissionais e produzimos um relatório que expôs em detalhes as profundas violações de direitos e detalhou a situação das pessoas institucionalizadas ali. Dadas as denúncias anteriores e o que foi apresentado nesse relatório, o MP entrou com uma Ação Civil Pública. Resultado? Em abril de 2020 saiu uma decisão judicial determinando o fechamento da porta de entrada e o início do processo de desinstitucionalização.


E nada seria possível sem o que foi feito por quem veio antes. É por essa trajetória que é coletiva, que é feita aqui e ali por todos que são da luta antimanicomial, que pudemos, neste contexto extremamente adverso, garantir direitos, incluindo o direito à liberdade.


Quanta história de abril de 2020 até esta segunda semana de janeiro de 2021...


O Censo Psicossocial realizado pela SES RJ, as inúmeras e longuíssimas reuniões com os Municípios que usarem esse manicômio para internar e deixar pessoas, as muitas parcerias inventadas e alguns tantos necessários e duros enfrentamentos, a intransigente defesa de direitos por parte de tantos promotores de justiça que foram atores fundamentais, a conquista da nomeação de um interventor e a retomada do serviço pelo Município, a descoberta de que havia mais pessoas institucionalizadas, a abertura de SRTs e a criação de SRTs solidárias entre Municípios - e aqui queria saudar a SES RJ, na figura do Daniel Elia, pelo importante trabalho que fizeram para efetivar a saída das pessoas do manicômio e garantir moradia.


Ah, e todo o intenso, tenso e muito bonito trabalho de desinstitucionalização a partir do interior da instituição na busca por restituição da subjetividade das pessoas que se encontravam em Cananeia. Isso não seria possível sem a firmeza de Fabiano Silva e da equipe de intervenção e o compromisso com a dignidade humana. Esse hospital psiquiátrico tinha uma ala que, ao que parece, já havia sido uma senzala. Fabiano tomou por decisão começar o trabalho desativando aquela ala, tirando todos os homens dali.


Muita história... Fico em mim a imagem e a fala das pessoas que conquistaram a liberdade. Pequena e última história: quando fomos fazer as entrevistas um senhor institucionalizado naquele manicômio há mais de 10 anos, vestindo um bonito chapéu panamá, só respondia: "aqui tá bom, tem comida". Apenas isso. Era triste de ver. Me vinha à mente a pergunta de Primo Levi: é isto um homem?


Bem, em dezembro de 2020, depois de alguns meses de intervenção e de um trabalho de resgatar sonhos, dignidade e ir produzindo direitos, encontrei ele de novo no manicômio. Ele me saudou e dizia que agora sim estava bom, que ele descobriu que não sabia o que era comida boa, o que era banheiro limpo. Que as pessoas melhoraram e, animadíssimo, dizia que agora ele podia até escovar os dentes! (Imaginem a miséria de vida que ele se encontrava antes). Daí ele completou falando que bom mesmo seria o dia que ele sairia de lá para morar em uma casa e que nesse dia ele não iria levar nada do manicômio: "vou comprar um celular, um som e umas roupas. Daqui não vou levar nada, só a roupa do corpo e vou!".


Ele foi morar em uma SRT no dia 13 de janeiro de 2021. A casa nova dele é linda, digna e fica no espaço comum da cidade. Espero que agora, em liberdade, ele se vista como queira, vá ao mercado descobrir comidas que sequer conhece ainda, que compre o som dele e tenha muitas novas e boas descobertas em uma vida bela.

Viva a reforma psiquiátrica que segue contra a maré e contra os tsunamis garantindo liberdade e direitos! 



 
 
 

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