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Os fazedores

100.000 mortes.

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De uns meses para cá tenho preferido reler obras que me marcaram a ler novos livros. Foram poucos os novos livros que li nesse ano que produziram algo em mim. Talvez seja certo azar com as obras escolhidas. Talvez esteja difícil sentir encantamento por algo no presente.


Semana passada terminei de reler ‘Mario Tommasini: vida e feitos de um democrata radical’. O livro conta sobre as lutas de Tommasini entre o final dos anos 1960 e começo dos anos 1990 de enfrentamento das diversas formas de institucionalização e criação de novas respostas sociais para questões complexas. Manicômios, asilos, orfanatos, prisões e cenas de uso de drogas. Para cada um dos cenários e tendo como centro das ações as pessoas, Tommasini construiu respostas criativas, articuladas e inovadoras, indo contra a burocracia do partido e do Estado e fomentando liberdade. É surpreendente como algumas das respostas são, ainda hoje, ousadas. Ao final do livro percebemos que a ousadia consiste na sua atitude crítica e afetiva, que coloca em primeiro lugar os fazeres e as pessoas e na sua postura profundamente democrática, tomando o poder para redistribuí-lo. Tommasini, que havia sido um partegiano, é dessas pessoas que entende que a democracia, antes de ser um regime de governo, é um modo de relação e de agir no mundo


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Relendo esse livro me vieram à memória algumas pessoas que são ‘fazedores’. Pessoas que se dispõem a colocar o corpo em relação, a se enlamear da bruta realidade com os que estão na lama para juntos sair dali, e a criar as condições para que algo possa vir a ser transformado, ao invés de ficar à espera de as condições estarem postas para, daí, agir. Lembrei-me de algumas pessoas, mas quero falar de uma: Antonio Lancetti.

Lancetti era surpreendente. Transitou por diferentes campos do conhecimento e da prática com habilidade ímpar de criação nas fronteiras e encruzilhadas entre teoria e práxis - o que para Espinosa é própria definição de agente político. Lancetti era ação. Eu não saberia enumerar e dizer sobre os seus feitos e nem o posso fazer – deixo essa tarefa para seus amigos e companheiros de longa data. Mas sei que ousar e inventar ações democráticas constituía seus movimentos e que ele fez muito – da atenção básica, aos serviços de saúde mental; das experiências de desinstitucionalização, às experiências inovadoras junto às pessoas com necessidades decorrentes do uso de drogas. Clínica peripatética que não perdia a dimensão da res publica.


Certa vez, Lancetti me mostrou um texto que estava escrevendo e que estaria na próxima edição de Saúde e Loucura. Se não me engano, o título era ‘Basaglia encontra Anchieta’. O texto ficcional versava sobre a vinda de Basaglia aos trópicos e sobre um encontro, em Santos, com Anchieta, o padre. Conversavam sobre (des)colonização, povos indígenas e, claro, manicômios e desinstitucionalização. Não saberia contar a história, pois para mim ficou mais a marca de como o texto era disruptivo: rompia com o óbvio e o instituído para criar movimentos. Não sei se esse texto foi finalizado e se é parte da última edição de Saúde e Loucura. A bem da verdade, preferi não saber, pois assim é possível que o texto esteja lá, vivo. Lancetti era potência.


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Por que falar disso agora?

Porque nesse desgoverno hoje atingimos a marca de 100.000 brasileiros mortos desde o início da pandemia. Como vamos sair deste horror? Como fazer parar este desgoverno? Como romper com o instituído e enfrentar as forças do Estado para reinstituir um mínimo de democracia?


Queria ter a resposta.

Como não tenho, busco voltar-me para essas referências e ver se ali encontro alguma pista. Se o que precisamos é de respostas e não mais de diagnósticos situacionais, pois destes já estamos fartos de saber quais são, é sobre isso que interessa falar.

Interessa sabermos sobre o que tem sido feito nesse contexto que consegue brecar esse circuito de desgoverno na pandemia. É preciso nos aproximarmos das histórias e das pessoas que fazem: das ações de cuidado locais do CAPS do extremo de sul de São Paulo junto aos guaranis, ao movimento organizado em Paraisópolis por liderança comunitária para enfrentamento da pandemia; dos princípios de organização de um movimento de entregadores contra as condições de exploração, às ações de solidariedade do MST que garantem comida na mesa e fazem a crítica à ausência de políticas públicas.


O que interessa é agir, é perceber que o poder está aí e que, ao invés de continuamente dá-lo, é preciso tomá-lo. Evidentemente, são muito distintas as possibilidades de ação em um contexto de democracia, como no caso de feitos de Tommasini e Lancetti, mas não é que não houvessem para eles enfrentamentos de pequenos poderes, daí ser possível se inspirar. Muitas vezes são movimentos locais e pequenos em tamanho, mas que têm a capacidade de romper com o instituído e abrir caminho para algo novo se colocar em movimento. É preciso ousar, é preciso arriscar e criar as condições de saída. E é preciso dar visibilidade e falarmos sobre essas pessoas, instituições e ações que se instituem como potência.


A crítica é fundamental. Agora, para mudanças e para atuarmos como agentes políticos, é preciso de práxis.

 
 
 

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