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O que não tem nome



Sobre Sérgio, as vinte e seis pessoas e Genivaldo Jesus dos Santos.

(o que é isso, Brasil?)

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Eu corro.

Eu corro porque enquanto estou correndo a experiência é de que as ideias e os afetos se esclarecem. É como se eles perdessem o excesso e eu ficasse mais leve.

E eu escrevo.

Escrevo principalmente para organizar essas ideias e afetos. Quando concluo um texto é como se tirasse de mim algo que me ocupa de maneira confusa, e daí consigo me organizar e saber o que preciso fazer.

Hoje corri por uma hora.

Não foi suficiente para dar conta dessa semana. Entrei no banho e desabei a chorar (e nem toda aquela água caindo do chuveiro bastou).


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Segunda-feira, Hospital Psiquiátrico, Nova Friburgo, RJ.


Cento e dezessete pessoas abandonadas ali, número superior ao das cento e onze que encontrei ali no ano passado (será que transformar em palavra um número ajuda a esclarecer que cada um dos números de cen-to e de-zes-se-te são pessoas?).


Para falar desse manicômio e do que vi, poderia falar de Dermeval, psiquiatra de formação, político de carreira, dono deste manicômio e ex-prefeito da cidade. Poderia contar sobre sua família de médicos e políticos - seu tio também foi prefeito da cidade com apoio da UDN no final dos anos 1950 -, uma tradicional família brasileira. Corre à boca pequena nessa provincial cidade muitas histórias e boatos sobre essa família de enorme força política local. Um deles diz que a família apenas trocou de negócios: de pessoas negras escravizadas para pessoas loucas e indesejadas socialmente. Não sei se isso é verdade.

Mas a verdade que interessa é que eu não poderia me importar menos com o Dermeval. O que me importa é como garantir cidadania e liberdade, como construir condições para que as pessoas possam viver uma vida feliz e como fechar manicômios para que nunca mais ninguém entre neles. O que me importa é cada uma das cento e dezessete pessoas que estão naquele manicômio.


Uma delas é o Sergio, de 60 e tantos anos, sendo mais de 10 neste mesmo manicômio.


Fazia 11 graus na segunda-feira. Sérgio estava com uma calça velha, uma camiseta e um par de chinelo, sendo cada pé de uma cor. Ele tremia. Me aproximei, disse oi e a primeira coisa que ele me respondeu com a voz baixa e com certa dificuldade para articular as palavras foi: "tô com frio". Era óbvio. Bastava vê-lo.

Um dos trabalhadores deste manicômio estava ali por perto e o chamei. Esse trabalhador respondeu com um muito simpático e animado "Oi!". Eu lhe disse que fazia frio e o Sérgio não tinha casaco nem sapato fechado. E o trabalhador me respondeu: "Ah, mas tem casaco na rouparia!".


Cinco longos segundos de silêncio entre nós. Sergio do lado, ignorado, literalmente tremendo de frio.


Tive que dizer: "O Sérgio precisa de um casaco", apontando para ele. Apenas aí que o trabalhador o viu e disse: "Vamos pegar um casaco". E os dois foram para o depósito de roupas velhas desse manicômio.


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Terça-feira. Favela da Penha, Rio de janeiro, RJ.


Primeira notícia do dia: chacina em curso.

Até agora, sabe-se de vinte e seis pessoas que foram assassinadas. Os relatos dizem que o número é maior e a barbárie vai muito além de um número. Casas invadidas, facadas, roupas de pessoas assassinadas trocadas, sumiço de documentos e corpos mudados de lugar para ocultar as mortes - como se fosse possível esconder isso.


Quem ousava questionar a polícia, recebia como resposta ameaça e tiros (há vídeos disso). Escolas fechadas, pessoas escondidas com medo de tomarem um tiro dentro de suas casas.


Ação ocorrida com participação direta do Estado - seja porque perpetrada por suas forças policiais e autorizadas pelo executivo, seja porque os que têm força institucional para, ao menos, colocar freios nisso (judiciário e Ministério Público) se omitem, para dizer o mínimo. E a mídia para falar dessas vinte e seis pessoas usa como único critério o de se são conhecidas ou não informações sobre prática de atividades criminosas. Não são pessoas, não têm história, não têm família, não são nada além disso. A mídia avaliza o discurso de que bandido bom é bandido morto, aclamado pelo presidente.


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Quarta-feira. Terra sem leis, Umbaúba, SE.


Policiais criaram uma câmara de gás no porta-malas do carro, torturaram e assassinaram Genivaldo de Jesus Santos, um homem de 38 anos, negro e com problemas de saúde mental.

As pessoas disseram que Genival estava andando de moto e foi parado pelos policiais. Nervoso, levantou a camisa para mostrar que não estava armado e tirou sua cartela de remédios do bolso. Nem todos os Santos de seu sobrenome, nem Jesus, puderam protegê-lo e impedir o que aconteceria a seguir.

O assassinato foi assistido por pessoas que, o que os relatos indicam, nada puderam fazer para impedir isso.


Se você teve a infelicidade de ver o vídeo, assim como eu, você também sabe: é evidente que isso não foi improviso. Os policiais sabiam exatamente o que estavam fazendo. Na rua mesmo, em plena luz do dia, com pessoas vendo e acompanhando aquilo. É prática institucionalizada.


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Não acho que existam palavras e ideias suficientes no mundo que deem conta disso. Não existe como acomodar a experiência e imagem de pessoas largadas no chão do manicômio, dos corpos (não tratados como pessoas) sendo colocados em um em cima do outro em um tanque na Penha e das pernas de Genivaldo se movendo para fora do porta-malas, tentando resistir à sua morte.

Cada uma dessas pessoas com história, desejos e necessidades que as tornam únicas. Em comum a miséria e a opressão a que são submetidas.

Esses dias todos eu li. Eu li muito porque é isso que faço depois de correr e antes de escrever.

Hanna Arendt teria que viver o Brasil de 2022 para saber que o conceito de banalidade do mal é insuficiente.

Se Hobbes conhecesse a polícia brasileira teria que rever o que definiu por estado de natureza – talvez poderia utilizar a ideia dos círculos do inferno de Dante e descer um nível desse estado para falar da maldade da polícia.

Mesmo Espinosa e Basaglia, que é sempre onde acabo encontrando pistas para respostas, dessa vez não ajudaram muito.

Basaglia comparava os manicômios aos campos de concentração. Primo Levi, se contrapondo, dizia que eles não são equiparáveis, pois no primeiro a morte é, digamos, um subproduto: neles até há uma porta de saída, enquanto nos campos de concentração existe apenas uma câmara de gás.

O Brasil de 2022 inventou a câmara de gás a céu aberto, na rua, para execução sumária de pessoas pobres, negras e com problemas de saúde mental.

O que Primo Levi diria disso?


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Quando comecei a escrever esse texto hoje pela manhã o fiz porque achei que me serviria de algo – e se me servisse de algo, talvez servisse para mais alguém.

Mas, dessa vez eu não sei como pensar isso tudo.

É isso.

Isto, então, é apenas um desabafo, que talvez encontre ressonância no aperto no peito de outras pessoas diante desse Brasil.

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Hoje fez 13 graus de temperatura em Nova Friburgo.

Espero que Sérgio esteja de casaco.

 
 
 

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