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Estigma da periculosidade social do louco

Atualizado: 18 de jul. de 2024


E, mais uma vez, volta a velha e falsa vinculação da ideia de periculosidade social à loucura.


Saiu hoje no NY Times. Após sugerir o porte de armas pelos professores, Trump (ainda sobre o tiroteio) fez mais uma de suas declarações (ao final dessa nota). Em resumo: Trump acredita que os manicômios são o lugar em que você deve colocar uma pessoa quando ela supostamente apresenta sinais de que irá cometer um crime. Ainda, que se houvesse manicômios você poderia pegar a tempo uma pessoa, como o atirador da Flórida, que está agindo tal como uma panela de pressão prestes a explodir. Segue afirmando que diversos governadores fecharam manicômios que poderiam ser uma solução para esse problema. Encerra falando que hoje não há nenhuma opção entre a prisão e deixar ele, o atirador, na casa dele e que isso não é mais possível. Então, os governadores devem começar a pensar sobre isso.


Há um conjunto tão grande de estereótipos, preconceitos e estigmas nessa declaração que apontar um a um resultaria em um longo texto (ainda mais que esse). Ao invés disso, vale se ater ao ponto central: a vinculação entre a ideia de periculosidade social e de loucura. Dois autores são essenciais para compreender isso: Foucault e Basaglia.

Foucault, em O Poder Psiquiátrico, afirma que essa vinculação tem raízes na relação entre a psiquiatria e os aparatos da justiça, sendo justamente aí que reside o poder psiquiátrico. Em síntese, em determinada época histórica médicos passaram a dar pitacos sobre crimes e, a partir de então, foi criada uma ideia de doença mental denominada de monomania que contava com o seguinte raciocínio: se alguém comete um crime sem razão de ser, o fato de cometer um crime seria o sintoma de uma doença, sendo a essência dessa mesma doença o próprio crime. Nessa lógica, o crime pertenceria à doença mental. Daí que, para Foucault, não “se trata não tanto de demonstrar que todo criminoso é um possível louco, mas de demonstrar – o que era muito mais grave, porém muito mais importante para o poder psiquiátrico – que todo louco é um possível criminoso”. A psiquiatria funda, assim, seu poder a partir da ideia de periculosidade social e passa a ocupar a função social de, supostamente, proteger a sociedade contra o perigo que o outro encarna.


Também assinalando a proximidade entre a psiquiatria e os aparatos jurídicos, Basaglia afirma que os aparatos jurídicos complementam a psiquiatria, no sentido de que por si e com a lógica própria da medicina a psiquiatria não consegue circunscrever sua constituição e ação. Daí que “o conceito de ‘periculosidade social’ – próprio do campo jurídico” passa a ser “justificado e racionalizado dentro das categorias médicas, ou melhor, o modelo médico fica constrangido dentro da necessidade da sanção jurídica”. Em uma sociedade que é intolerante às diferenças e que tem uma classe dominante que estabelece as normas sociais de modo que uma parte significativa das pessoas esteja situada fora dessas normas, a psiquiatria (essa que adota a ideia de periculosidade social) exerce sua função social: realiza a manutenção da ordem pública diante da demanda social.


Ora, o que Trump afirmou é expressão dessa demanda social e da ideia do manicômio como mantedor da ordem pública. É muito grave por si e ainda mais pelo evidente lugar de poder que Trump ocupa. Fazer as afirmações preconceituosas e estigmatizantes que ele fez e, mais do que isso, afirmar a necessidade de rever o fechamento de manicômios é revelador de certo imaginário social que ainda tem lugar na sociedade e é forte.

Por isso uma das grandes tarefas das reformas psiquiátricas antimanicomiais mundo afora é transformar o imaginário social em relação à loucura. Se você leu esse texto até aqui e em alguma medida, mesmo que muito pequena, concorde com as declarações de Trump, repense. Você está sendo preconceituoso e o impacto do seu preconceito é o aprisionamento e maus tratos (para dizer o mínimo) das pessoas com experiência de sofrimento psíquico e, muito provavelmente, de todas aquelas que desviam das normas sociais impostas.


O original:

“Mr. Trump lamented a period in history when he said mentally unstable people who had not yet committed a crime could be committed to a mental hospital if it were clear they were acting like a “boiler ready to explode". “You could nab somebody like this,” Mr. Trump said of the Florida shooting suspect, Nikolas Cruz, citing the scores of warning signs that Mr. Cruz was troubled. “You can’t arrest him, I guess, because he hasn’t done anything.” But he said too many of the governors in the room had closed the mental hospitals that might have been a solution to that problem, often because of how expensive they were. “We have no halfway. We have nothing between a prison and leaving him at his house, which we can’t do anymore,” Mr. Trump told the governors. “So I think you folks have to start thinking about that.”

 
 
 

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