Estamira, Exu e o Carnaval
- claudiabraga10
- 27 de abr. de 2022
- 3 min de leitura
Boa noite, moça, boa noite, moço.
Basaglia dizia que os loucos são os últimos dentre os últimos. Os loucos são os esquecidos, as pessoas de quem nunca ninguém fala, os excluídos.
Pois Estamira, talvez a mais última das últimas – mulher, louca, preta, violentada, miserável e acusada de ser possuída pelo diabo, que viva no e do que recolhia do lixão do Jardim Gramacho, em Duque de Caxias –, falou e dela foi falado no belíssimo enredo da Acadêmicos da Grande Rio.
Estamira foi o fio narrativo do enredo que homenageia Exu. Ninguém deveria viver nas condições em que Estamira (sobre)viveu. Revirando uma montanha de 60 metros de dejetos que era o Jardim Gramacho, chamado eufemisticamente de aterro sanitário e localizado ironicamente em cidade que recebe nome de título de nobreza, Estamira dali retirava o que parecia lhe ser útil. Estamira, em sua complexidade e contradições – que todos nós somos – dizia ter “muitos sobrenomes”. Em sua insubmissão, se movimentava e inventava, abrindo caminhos na existência. É dela a frase “Câmbio, Exu. Fala, Majeté”, com a qual se comunicava por um telefone com Exu. Essa frase se tornou em parte o próprio título do samba enredo “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu”.
Eu, que tenho como única religião o carnaval, essa festa divina e de rituais que tem sua apoteose nas encruzilhadas entre as ruas e a avenida durante quatro dias, fui ler sobre Exu e outros orixás. Que coisa mais linda o que encontrei. Do que pude entender – e aqui peço desculpas antecipadas pelos eventuais equívocos de uma leitura ainda inicial – é que Exu é orixá que cria movimento e abre os caminhos. Em Pedrinhas Miudinhas, Luiz Simas afirma que Exu foi criado com 16 atributos e expressa todos eles, por isso Exu é “múltiplo no uno”. Exu, assim, é complexidade e contradição aberta que, em suas múltiplas expressões, dinamiza e transforma a vida; daí Exu ser vitalidade, de tal maneira que a ausência de Exu é a negação da própria vida.
Nas repressões sofridas pelas religiões de matrizes africanas, Exu foi associado à figura do diabo do cristianismo em uma certa concepção de bem e mal. Tal erro foi e continua sendo perpetuado como forma de intolerância religiosa. Talvez, enquanto preconceito, Exu tenha sido colocado dentre os orixás no lugar do último dentre os últimos? Não sei. Sei que o que vi no desfile da Grande Rio é que Exu foi contado do lugar que é: a partir de sete chaves foi para muitos aberto o caminho para conhecer Exu.
E não só. Ainda na preparação do desfile, os carnavelescos da escola contaram que, na narrativa proposta pela escola na avenida, Exu, em sua complexidade, poderia ser “associado ao carnaval, às festas, às artes e até ao lixo. Não o lixo material, mas o lixo de valores, o resto da sociedade que ninguém quer, que está à margem”, daí o lixão e suas condições – aquelas em que vivia Estamira – ser pensado e representado em um carro alegórico “como fator de transformação e reflexão e sobre como pensar uma sociedade menos excludente”. Estamira, enquanto fio narrativo de um enredo que exalta Exu no carnaval, é apresentada como potência de provocação, de abrir reflexões, de transformar a sociedade. O oposto do lugar em que ela foi colocada em sua vida.
Pequeno parênteses final: apenas ao ver o desfile comecei a entender aquela frase que diz que com a pedra lançada hoje Exu alcançou o pássaro ontem. O enredo da Grande Rio lança uma pedra sobre a intolerância religiosa e sobre a opressão – essas velhas conhecidas que insistem em se restituir no futuro.
Carnaval também é isso. É fervo, sim. E é abertura para transformação.
“Laroyê, laroyê, laroyê
É poesia na escola ou no sertão
A voz do povo, profeta das ruas
Tantas Estamiras desse chão”
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