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Cultura manicomial

“Na Guanabara jaz uma cidade que poderia ser maravilhosa: de beleza natural estonteante, abandonou e mata o que a constitui - o povo”.


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É durante uma vistoria em um hospital psiquiátrico que acompanho o que se passou hoje na ponte Rio-Niterói.


Com um ouvido eu escuto em volume baixo das pessoas internadas e institucionalizadas que o que é necessário lá é evitar a “Gaiola”, também apelidada de “Carandiru”. Com o outro escuto, em um volume alto o repórter que vai narrando a situação de um sequestro.


O Carandiru - não aquele do massacre de 111 pessoas pela Polícia Militar de São Paulo, mas o do hospital psiquiátrico - é para onde vão as pessoas internadas se há situações de brigas, de namoros e de crises. Sim, três situações completamente diferentes e para as quais é oferecida uma mesma reposta: contenção química e mecânica. Em português claro: amarrar a pessoa em uma cama e mantê-la isolada. Chamada pelo serviço de sala de observação, tem uma estrutura física feita de tal modo que é impossível observar o que ali se passa.

Quase todo hospital psiquiátrico em que já estive tem uma sala assim. É tão banal que não costuma haver grandes constrangimentos por parte dos profissionais em mostrar esse espaço. Espaço de exclusão e opressão sustentado por uma ideologia que afirma que é cuidado o que de fato é violência e que mantém afastado da sociedade quem é definido como desviante das normas sociais.


Voltando para a ponte Rio-Niterói. Sequestro, reféns e snipers (palavra terrível hoje parte do vocabulário cotidiano do Rio de Janeiro). A situação era preocupante e grave.


Volto para vistoria e escuto mais tantas histórias.


Ao final dela, volto a saber sobre como havia terminado o sequestro: um tiro, mais uma morte pela polícia e um governador vibrando. Quem acompanha o que se passa no Rio já não espera nenhuma demonstração de mínima empatia por parte do governador, mas o ver comemorando como quem teve ali uma vitória é horripilante. Não é uma mera questão de decoro, é de humanidade.


O problema é que o que se passou ali tem lastro em uma política de base. Mira na cabeça e mata. Depois a gente vê o que era. Tem sido assim. E a comemoração do governador por uma morte - e não pelas vidas - é o toque de horror deste triste evento e que se acrescenta às suas recentes declarações e posturas diante de mortes pela polícia.

Sobre o que tem acontecido no Rio, na semana passada foram seis assassinatos (conhecidos) em cinco operações policiais e, ao ser questionado sobre esta política, o governador lamentou as “mortes futuras”. Em 2019 já foram mortas pela polícia 881 pessoas. Como é possível que a pessoa responsável pela segurança pública lamente antecipadamente mortes futuras? Que tipo de pessoa celebra a morte de alguém, como nesse caso?


Saindo do hospital psiquiátrico voltei no carro com uma pessoa que passou mais de uma hora falando e apoiando efusivamente esta ação (vou poupar a todos dos comentários). Enquanto o escutava e tentava, aqui e ali, propor reflexões, passava diante dos nossos olhos a cidade. Bolsões enormes de miséria, terrenos insalubres, moradias improvisadas e que não oferecem o mínimo de dignidade. E também íamos vendo as pessoas que nessas condições moravam. E ao pensar nessas pessoas ecoava nos meus ouvidos a fala do governador: “mortes futuras”.

Existirão mortes futuras.


A situação de hoje no Rio é uma terrível e triste eventualidade que se situa em um contexto amplo de extinção de políticas de proteção social e de fomento de condições dignas de vida.

E ainda existirão mortes futuras ligadas à este contexto mais amplo.

E assim, tristemente, a própria cidade vai morrendo. Talvez aquela seja a lápide desta cidade se uma mudança profunda não ocorrer.

É preciso e é urgente uma mudança profunda. Essa cidade precisa deixar viver e começar cuidar de seu povo.


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Já havia escrito essas palavras quando no final da tarde vejo a notícia: “sem antecedente criminal, sequestrador tinha perfil psicótico”. Por óbvio, essa avaliação feita à distância e com base sabe se lá em que não é séria e nem tem qualquer valor. Mas esta declaração serve para algo: apoiando-se no preconceito generalizado sobre a suposta periculosidade social da pessoa com experiência de sofrimento psíquico, o assassinato pelo governo ganha um contorno para parte da sociedade. Se é “bandido”, mata e pronto. Com isso estão de acordo algumas pessoas. Se não é, mata e fala que é louco. E com isso dá-se um lugar para esta ação para tantas outras pessoas.

E se mesmo depois do que relatei sobre o que é um hospital psiquiátrico você acha que se é louco não precisa matar, mas precisa mandar para uma instituição, lembre-se que para o respeito à dignidade humana não cabe parcialidade ou exceção. A violência dirigida à pessoa com experiência de sofrimento psíquico é também sustentada pela sociedade.



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