Cracolândia - não é gentrificação
- claudiabraga10
- 22 de mai. de 2017
- 3 min de leitura
Gentrificação, um processo relacionado à especulação imobiliária, não é a razão da ação violenta que ocorreu na região chamada de cracolândia e explicar o ocorrido apenas nesses termos é tão enganoso e simplista quanto aquela falsa justificativa de combate ao tráfico de drogas. Obviamente a gentrificação é um elemento significativo, mas está longe de ser o mais importante. Inclusive, se ater a essa explicação não ajuda a modificar a situação e nem a refletir sobre qual será um dos prováveis destinos de tantas pessoas que habitavam aquele território: as comunidades terapêuticas, que nada mais são do que novos manicômios.
A questão chave é aquela que Foucault e Basaglia já assinalavam: aqueles que por algum motivo desviam da normal social vigente são considerados perigosos e nocivos para a sociedade. E aqui é preciso entender que quem define a norma social, representada pela eficiência e pela produtividade, é a classe dominante. O “desviante” é aquela pessoa que perdeu ou nunca teve força de contrato com as fontes produtoras e, por isso, se encontra fora da norma ou no limite dela. Em síntese, por não dispor de poder contratual nas relações sociais torna-se um sujeito excluído do campo das relações sociais, excluído da sociedade. Daí é preciso indagar quem são as pessoas que habitavam a região chamada de cracolândia e notar que, mesmo considerando a multiplicidade de situações e histórias de vida, um traço mais ou menos comum é justamente esse baixo poder contratual e o fato de as pessoas romperem com as estreitas e rígidas normas sociais. Mas ainda, é preciso acrescentar um outro elemento afirmado por Basaglia, que é essencial: a diferença de expressão de si no espaço público e no privado. Isso porque, para a sociedade, uma coisa é fazer uso abusivo de drogas no espaço privado – nas varandas gourmet e nos condomínios –, outra é fazer uso no espaço público. Isso significa dizer que não tem espaço no tecido social aquilo que se expressa como desvio nos espaços públicos! E, aí sim, temos a questão central: a diferença de classe social e de poder econômico de pessoas que fazem uso abusivo de drogas e que rompem com as normas sociais. Ora, quem é “objeto de escândalo público” nas situações de uso abusivo de drogas não é qualquer pessoa, mas os “desviantes” miseráveis. São esses os "desviantes" que não têm qualquer espaço e possibilidade de existência no tecido social... E para essas pessoas a sociedade inventou um lugar de segregação. Qual é a instituição que tem por excelência como função social conter o que a norma social afirma como desvio? O manicômio, que assim exerce a função de custódia e segregação dos desvios que não têm espaço no tecido social.
Por isso o problema é complexo. Se fosse apenas uma questão de gentrificação, a ação que ocorreu talvez fosse outra e, além disso, talvez outras respostas seriam produzidas. Mas, não. O que a ideia de “Cidade linda” articulada ao “Projeto Redenção” (por sinal, um nome que diz muito da forma de relação estabelecida com o outro) traz é isso: uma lógica higienista e autoritária de contenção e segregação de desvios das normas sociais. Assim, a questão não é apenas como barrar a especulação imobiliária, mas como alargar as normas sociais e construir uma sociedade em que as diferenças possam conviver.
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