top of page
Buscar

Conservadorismo cotidano

Nos últimos anos muitos acontecimentos me pegaram pelo estômago, reviraram ele e me fizeram pensar que, agora sim, todos os limites tinham sido ultrapassados.


Aí torna-se fato público que uma criança de 10 anos, estuprada desde os 6, tinha engravidado em mais um dos estupros. Francamente, para preservá-la, isto nem deveria ser notícia pública. Mas, virou notícia - não pela comoção que isso deveria causar em qualquer pessoa com um mínimo de humanidade, mas porque havia quem se achasse no direito de questionar o que deveria ser feito: o aborto. E aí vemos essa manifestação na porta de um hospital das pessoas autointituladas conservadores chamando a ela e ao profissional que iria interromper essa gestação de assassinos. Eu não sei descrever a repulsa que eu sinto por essa pessoas. Pensar nessa menina - uma criança - me dói profundamente o peito... são tantas as violências que ela já sofreu e continua sofrendo.

Nessa história é inegável a dimensão da pobreza como mais uma camada de violência, pois se ela fosse de classe média este aborto já teria sido feito há tempos e isso não seria questionado. Agora, além de essa menina precisar ser preservada de contínuas violências, não é sobre ela que devemos falar, mas sobre essas pessoas e a defesa de valores conservadores - resta saber conservadores de que: de violências? de abusos? de uma moral qualquer enquanto uma criança pode ter sua vida ainda mais destruída?


Eu me lembro bem de quando foi que eu verdadeiramente me dei conta de como é uma marca da sociedade brasileira esse conservadorismo.


Na OMS há algumas reuniões que são abertas para observadores. Quando estava por lá foi agendada uma dessas reuniões e o tema geral era o aborto. Eu fui supondo que seria uma reunião para discutir a questão, ou seja, o aborto. Era uma reunião com representantes do alto escalão da Argentina, Uruguai, Irlanda e mais um ou dois países em que o aborto é legalizado. Chegando lá sentei em uma cadeira e aguardei ansiosamente para saber qual seria a posição apresentada por cada um dos países. Logo no início da reunião me dei conta de como eu era tonta.


Não havia e não há qualquer discussão sobre está questão pois o aborto não está em discussão: é um problema de saúde pública e ponto. A reunião tinha como foco compartilhar estratégias sobre como garantir no âmbito da saúde pública o acesso ao direito de abortar e quais estratégias de educação sexual eram eficazes. Por exemplo, um problema apresentado era o de situações de mulheres que vivem em zonas rurais e em situações de vulnerabilidade e que, pela distância ou falta de recursos, não conseguiam acessar a tempo aos serviços do sistema de saúde para realizar o procedimento (quando chegavam, a gravidez já estava avançada).


Foi nesse dia que eu me dei conta de como o Brasil é um país profundamente conservador. Eu participo ativamente de grupos feministas e de saúde pública. Quando o tema do aborto é pautado é no sentido de construir argumentos para dizer o porquê disso, esse fato que é que uma em cada 5 mulheres já fizeram ao menos um aborto, deve ser um problema de saúde pública. Vejam, isso não é porque esses grupos não sabem da importância de discussão de políticas públicas para garantir o acesso ao procedimento de interrupção da gravidez.


Na sociedade brasileira não é possível na disputa de forças criar um mínimo de avanço em relação à esse tema. Esse conservadorismo, que se presta a não sei a que, é tão profundo que, como no caso dessa criança, as pessoas chegam a questionar até a interrupção a gravidez fruto de violência.


É sobre esse conservadorismo que precisamos falar, ainda mais considerando que a ministra mais popular atualmente é uma pessoa que faz carreira defendendo valores específicos. Melhor encararmos agora do que mais tarde: se já não era, parte significativa da sociedade brasileira é hoje profundamente conservadora. E é melhor entendemos isso logo para que outras meninas e mulheres não passem pelo que essa criança, além de tudo que já sofreu, está passando.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Golpistas são loucos?

Essas pessoas que estão nas ruas e nos quartéis são doidas? Vamos lá, me acompanha (na mesma linguagem que está sendo utilizada para não...

 
 
 

Comments


Saúde Mental Global
Estudos e Pesquisas em Saúde Mental, Drogas e Desinstitucionalização 

Terapia Ocupacional - FMUSP
R. Cipotânea, 51

Cidade Universitária

São Paulo - SP, 05360-160

claudia.braga@usp.br

© 2024 by Karina Nishioka. Powered and secured by Wix

bottom of page