Conservadorismo cotidano
- claudiabraga10
- 16 de ago. de 2020
- 3 min de leitura
Nos últimos anos muitos acontecimentos me pegaram pelo estômago, reviraram ele e me fizeram pensar que, agora sim, todos os limites tinham sido ultrapassados.
Aí torna-se fato público que uma criança de 10 anos, estuprada desde os 6, tinha engravidado em mais um dos estupros. Francamente, para preservá-la, isto nem deveria ser notícia pública. Mas, virou notícia - não pela comoção que isso deveria causar em qualquer pessoa com um mínimo de humanidade, mas porque havia quem se achasse no direito de questionar o que deveria ser feito: o aborto. E aí vemos essa manifestação na porta de um hospital das pessoas autointituladas conservadores chamando a ela e ao profissional que iria interromper essa gestação de assassinos. Eu não sei descrever a repulsa que eu sinto por essa pessoas. Pensar nessa menina - uma criança - me dói profundamente o peito... são tantas as violências que ela já sofreu e continua sofrendo.
Nessa história é inegável a dimensão da pobreza como mais uma camada de violência, pois se ela fosse de classe média este aborto já teria sido feito há tempos e isso não seria questionado. Agora, além de essa menina precisar ser preservada de contínuas violências, não é sobre ela que devemos falar, mas sobre essas pessoas e a defesa de valores conservadores - resta saber conservadores de que: de violências? de abusos? de uma moral qualquer enquanto uma criança pode ter sua vida ainda mais destruída?
Eu me lembro bem de quando foi que eu verdadeiramente me dei conta de como é uma marca da sociedade brasileira esse conservadorismo.
Na OMS há algumas reuniões que são abertas para observadores. Quando estava por lá foi agendada uma dessas reuniões e o tema geral era o aborto. Eu fui supondo que seria uma reunião para discutir a questão, ou seja, o aborto. Era uma reunião com representantes do alto escalão da Argentina, Uruguai, Irlanda e mais um ou dois países em que o aborto é legalizado. Chegando lá sentei em uma cadeira e aguardei ansiosamente para saber qual seria a posição apresentada por cada um dos países. Logo no início da reunião me dei conta de como eu era tonta.
Não havia e não há qualquer discussão sobre está questão pois o aborto não está em discussão: é um problema de saúde pública e ponto. A reunião tinha como foco compartilhar estratégias sobre como garantir no âmbito da saúde pública o acesso ao direito de abortar e quais estratégias de educação sexual eram eficazes. Por exemplo, um problema apresentado era o de situações de mulheres que vivem em zonas rurais e em situações de vulnerabilidade e que, pela distância ou falta de recursos, não conseguiam acessar a tempo aos serviços do sistema de saúde para realizar o procedimento (quando chegavam, a gravidez já estava avançada).
Foi nesse dia que eu me dei conta de como o Brasil é um país profundamente conservador. Eu participo ativamente de grupos feministas e de saúde pública. Quando o tema do aborto é pautado é no sentido de construir argumentos para dizer o porquê disso, esse fato que é que uma em cada 5 mulheres já fizeram ao menos um aborto, deve ser um problema de saúde pública. Vejam, isso não é porque esses grupos não sabem da importância de discussão de políticas públicas para garantir o acesso ao procedimento de interrupção da gravidez.
Na sociedade brasileira não é possível na disputa de forças criar um mínimo de avanço em relação à esse tema. Esse conservadorismo, que se presta a não sei a que, é tão profundo que, como no caso dessa criança, as pessoas chegam a questionar até a interrupção a gravidez fruto de violência.
É sobre esse conservadorismo que precisamos falar, ainda mais considerando que a ministra mais popular atualmente é uma pessoa que faz carreira defendendo valores específicos. Melhor encararmos agora do que mais tarde: se já não era, parte significativa da sociedade brasileira é hoje profundamente conservadora. E é melhor entendemos isso logo para que outras meninas e mulheres não passem pelo que essa criança, além de tudo que já sofreu, está passando.
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