Barbárie cotidiana
- claudiabraga10
- 7 de mai. de 2021
- 4 min de leitura
Ontem de manhã, enquanto eu tomava café da manhã, escutei no rádio sobre o começo da "operação" no Jacarezinho e sobre a morte de um policial. Na hora me deu um nó no estômago, um aperto no peito e só me vinha nos pensamentos todas as histórias que já vi se repetirem nesses anos em que moro no Rio.
Inclusive, morar no Rio te faz ter a exata dimensão de que é muito diferente morar em um lugar e viver um lugar. Eu não vivo o Rio de Janeiro. Me dei conta disso logo quando me mudei e ocorreu o seguinte: era março, chovia muito e o Rio vivia um daqueles dias de alagamentos e riscos de deslizamento. Eu estava com uns amigos jantando em um restaurante no Flamengo e o máximo de problemas que eu tive foram o de encontrar um taxi que me levasse para perto de casa, que na época era em Botafogo, e depois sair do taxi e ter que caminhar uns quatro ou cinco quarteirões com água quase no joelho porque era impossível passar um carro. Chegando em casa, fui ver as notícias. Li que um dos morros do Rio tinha alto risco de deslizamento e as pessoas deveriam deixar suas casas. Mas, elas não as deixavam por dois motivos. Primeiro, para onde ir, afinal? Segundo, porque tinham alguns jacarés soltos na comunidade. Sim, jacarés.
O que ocorreu foi que a chuva foi tão forte que derrubou o muro de uma das casas que criava jacarés e, claro, eles saíram e se espalharam. Agora você que não conhece o Rio pode estar se perguntando: por que raios alguém cria jacarés? Essa foi uma das minhas primeiras aulas de realidade do Rio: para comer pessoas. Ou, para ser mais específica, para se livrar de corpos (porque a essa altura não são mais pessoas, são corpos). Então as pessoas daquela comunidade tinham que optar por ou ficar em suas casas correndo o risco de morrer por desabamento ou de procurar abrigo seguro correndo o risco de no caminho serem mortas por um jacaré esfomeado. E por que não chamar o corpo de bombeiros para tirar os jacarés? Bem... já leu algo sobre organização e relação entre milícia, tráfico e tirania pela hegemonia de governança territorial? No dia seguinte me impressionou que isso não era notícia em nenhum lugar. Procurei ativamente e encontrei apenas uma nota em um jornal que na sessão "natureza" (juro) informava sobre a presença de jacarés no Rio como se eles simplesmente estivessem por ali, zanzando.
Como viver assim?
E isso foi apenas um dia de chuva forte.
Quem mora e vive o Rio de Janeiro enfrenta como uma de suas realidades cotidianas o terror. 'Operações' que começam de madrugada, abusos de todo tipo em uma cadeia de violências, balas perdidas que sempre encontram uma pessoa negra... Agatha, Marcos Vinicius, Maria Alice, Emily Vitória e a lista, absurda e infeliz, de crianças assassinadas é grande. E os três meninos de Belford Roxo. Aonde estão?
O que ocorreu ontem no Jacarezinho foi chacina. É pura barbárie. Não há outra palavra para definir os acontecimentos. É a completa desumanização e desidentificação com o outro. Pessoas sem nome e que sequer são chamadas de pessoas, mas de 'suspeitos'. O toque de sadismo em assassinar uma pessoa e colocar nos ombros de um corpo a camiseta da COMLURB (para quem não sabe, é a empresa de limpeza urbana do Rio) para passar uma mensagem é algo que não cabe no mundo.
Na verdade, nada disso que ocorreu cabe no mundo - ou não deveria caber...
E não pense que a revolta contra o ocorrido foi geral. Longe disso. Em grupos de whatsapp circulavam mensagens exaltando a chacina e os 'CPFs cancelados'. É, o buraco é muito, mas muito mais embaixo... Necropolítica não é feita de cima para baixo, não. É movida por ressentimento, ódio e, ao que parece, vontade de vingança que se expressam também ali, no dia a dia e no território.
Eu, que não vivo o Rio, não tenho a menor condição de organizar pensamentos e palavras para formular uma compreensão do que foi aquilo. É um emaranhado histórico e político, de um lado, de descaso do Estado pelas pessoas e por suas condições reais de vida e, de outro, de ações de instituições do Estado (incluindo as que deveriam garantir direitos e promover cidadania) e de grupos que ora são para-militares e ora são o próprio Estado que infligem terror. E tem uma dimensão do que é viver isso que é completamente incompreensível. Como no dia seguinte você acorda e lava o beco repleto de sangue de seu filho, de seu tio, de seu irmão e segue com a vida?
É incompreensível.
....
E depois de, mais uma vez, nós vermos se repetindo cenas de barbárie, o que nós, sociedade, vamos fazer com isso? Seguiremos com um nó entalado na garganta até o próximo episódio que nos afasta cada vez mais de um mínimo de civilização? Até quando?
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