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Apresentação - O processo de cuidar em saúde mental da criança e do adolescente negro usuário de CAPS IJ





A necessidade de reconhecer nos serviços de saúde mental o racismo institucional para superá-lo, construindo práticas cotidianas de enfrentamento ao racismo a partir dos serviços de saúde mental.


Vale lembrar que vivemos e trabalhamos em um país em que


  • 1.       mais da metade da população se autodeclara negra,

  • 2.       em que quase 70% dos usuários do SUS se autodeclaram negros,

  • 3.       e em que as relações sociais são marcadas pelo racismo




Também gostaria aqui de lembrar que, dentre os serviços de saúde mental de base territorial, os CAPS têm papel estratégico. São os CAPS que tomam responsabilidade pelas demandas de saúde mental de seu território e produzem práticas de transformação no cotidiano, redistribuindo poder nas relações e promovendo direitos das pessoas ali onde a vida acontece.

Pois bem, considerando essas questões, é fundamental que este debate deixe de ser local e realizado aqui e ali, para ser tomada como uma questão central dos serviços e, em particular, dos CAPS.

Então, nessa perspectiva de propor reflexões sobre as questões de raça e cor para as discussões e práticas do CAPS, nós gostaríamos de fazer alguns apontamentos sobre como afirmar direitos, trazendo as questões raciais para o primeiro plano. Nosso foco são os CAPSij, mas entendemos que as ideias que apresentamos podem ser úteis para refletir sobre as práticas dos CAPS de modo geral.

Sem mais delongas, conjuntamente, a partir da experiência prática e tendo como inspiração a proposição do kit de ferramentas Direito é Qualidade da Iniciativa QualityRights da Organização Mundial de Saúde (OMS) – Iniciativa que compreende que um serviço de saúde mental de qualidade é um serviço que defende, promove e garante direitos –, algumas pistas que podem ser úteis aos CAPS para construir práticas antirracistas a partir da agenda de direitos.


1.       O direito à liberdade e ao reconhecimento da cidadania

Esses são dois direitos fundamentais e que precisam ser tomados como ponto de partida das práticas e como horizonte.


Afirmar e produzir liberdade é um desafio central dos serviços substitutivos, envolvendo todas as ações de construção cotidiana dos encontros e das relações no território, produzindo estratégias e projetos que transformem valores, normas e cultura. Assim, é um desafio central porque todas as ações do CAPS se conectam a esse direito.

Construir o direito ao exercício da cidadania significa criar condições para que as crianças e adolescentes tenham o direito a exercer direitos. Em uma prática atenta à dimensão racial, requer escutar as experiências singulares e coletivas de racismo, abrir espaço para outros saberes e práticas que não os referenciados em uma cultura branca e desenvolver estratégias para ampliar as oportunidades de participação social e de exercício de poder pelas crianças e adolescentes em espaços de decisão, como as assembleias. Essa, a propósito, é uma questão que precisa ser refletida nos CAPS: como estão as assembleias dos CAPS? O que elas estão abrindo de oportunidades de diálogo e de redistribuição de poder? Como estão dialetizando conflitos e contradições para ampliar protagonismo e participação social? As questões de racismo aparecem nas assembleias?

Nesse caminho, é fundamental que os próprios trabalhadores reflitam criticamente sobre as relações que produzem e que, em particular, os trabalhadores brancos reflitam sobre o seu lugar na racialização do outro e sobre os privilégios da branquitude na construção das oportunidades de exercício da própria cidadania.


2.       O direito à prevenção de violências

Evidentemente, não é esperado que práticas violentas de diversas tenham lugar nos serviços de saúde mental, sendo necessário construir estratégias para preveni-las.

Em uma perspectiva racial, aqui se sobrepõe a necessidade de enfrentar no território o estigma e o preconceito vividos por crianças e adolescentes negros, e reconhecer para desconstruir o racismo estrutural que acontece nos próprios serviços e no território. Para isso, um caminho é escutar e dar lugar às discussões sobre as experiências cotidianas e violentas de racismo vivenciadas por crianças e adolescentes negros, que são muitas vezes experiências de humilhação e de constrangimento. Aqui se inclui a violência de Estado.

Esse caminho requer, também, estar atento às situações de racismo reproduzidas no próprio CAPSij e na rede de atenção psicossocial, reconhecendo o racismo e mantendo em aberto as reflexões sobre como enfrentá-lo. De novo, relembramos aqui a importância de práticas como a assembleia e, acrescentamos, a realização de fóruns de saúde mental e intersetoriais para que esta discussão tenha lugar e formas coletivas de enfrentamento possam ser elaboradas.

E é importante lembrar que prevenir violências também envolve planejar e colocar em práticas estratégias para garantir que crianças e adolescentes não entrem em circuitos institucionais excludentes e violentos, o que significa que é preciso que o CAPS esteja atendo para prevenir internações em hospitais psiquiátricos e em outras instituições totais, seja do sistema de saúde, seja da assistência social, seja da justiça.


3.       O direito à uma vida compartilhada em um território comum

O papel do CAPS envolve o mapeamento e ativação de recursos no território para criar oportunidades de vida digna, de coesão social e de projeção de outros futuros possíveis. Considerando a dimensão racial, é importante no trabalho CAPSij compreender o contexto de vida e a experiência do que é ser criança e adolescente negro naquele território, reconhecendo as dinâmicas racistas do território que bloqueiam oportunidades de exercício de direitos e que interrompem sonhos, projetos de futuro.

No plano propositivo, um caminho para práticas de enfrentamento ao racismo é o de mapear iniciativas e ações afirmativas no território, instituir parcerias com movimentos, associações e grupos de pautas antirracistas, e buscar dar visibilidade para os saberes e narrativas de pessoas negras em discussões - também para além do racismo. É preciso dar oportunidade para que as crianças e adolescentes tenham outras referências além das da branquitude e, ao mesmo tempo, fortalecer em rede iniciativas e ações afirmativas.

Junto à rede intersetorial e em especial com as escolas, as práticas de enfrentamento do racismo partem do reconhecimento da discriminação racial, ainda mais tendo em vista a sobreposição do estigma de ser usuário de serviço de saúde mental e a experiência de racismo.

 

4.     O direito ao cuidado singular

Sabemos que o cuidado nos CAPS se realizada tendo como eixo a construção do PTS das pessoas. Nos CAPSij, considerando a dimensão racial, a construção do PTS requer refletir crítica e afetivamente sobre se e como está sendo oportunizada a construção de projetos de vida de crianças e adolescentes negros. Envolve, também, reconhecer as questões de raça e cor como marcadores das histórias, culturas e valores dos familiares, dando lugar para isso no serviço.


Gostaria de lembrar a todos que como a qualidade do cuidado envolve a qualidade das relações, na produção do cuidado um caminho importante é o de os trabalhadores se atentarem à questão da racialização das relações e refletirem sobre em quais bases estas são construídas. Neste sentido, um aspecto central é que não é possível ser indiferente à cor/raça nas relações, pois não considerar as questões raciais significa continuar sustentando como referência universal uma cor/raça, que é a branca.

Encaminhando para o fim, a construção de práticas de enfrentamento do racismo nos serviços de saúde mental precisa fazer parte de uma agenda contínua e permanente desses serviços e da rede como um todo, o que demanda ação prática e mobilização. Com essas ideias iniciais que apresentamos, esperamos que este debate seja ampliado e tomado no cotidiano dos serviços, integrando as questões de raça e cor nas reflexões e práticas que já são parte das práticas dos CAPS. Ou seja, dito de maneira geral, entendemos que é necessário incluir a dimensão racial na construção dos PTSs, reconhecer o racismo institucional no serviço e na rede, assumir que as questões de raça e cor também integram o poder contratual das pessoas de tal modo que pensar a redistribuição de poder nas relações – que é uma dimensão central das práticas dos CAPS - precisa passar por ações antirracistas.

Bem, concluo lembrando que isto é nada mais do que cumprir com o mandato dos CAPS, que é o de enfrentar todas as formas de opressão, afirmando e construindo liberdade e direitos de cidadania para todos em um processo de emancipação social que não pode se dar de outra maneira que não a coletiva.

E considerando que o fundamental é a ação prática, queria chamar aqui para seguir nessa conversa a Estefania Ventura e a Helen Freitas, trabalhadoras do CAPSi da Brasilândia, que têm construído na prática essas ações apresentadas como pistas gerais para garanti direitos de crianças e adolescentes negros no SUS.


 
 
 

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