Han
- claudiabraga10
- 5 de mai. de 2021
- 3 min de leitura
Há exatos dois anos eu estava na Coréia do Sul à convite da OMS para discutir sobre políticas públicas e serviços de saúde mental com países do oeste asiático. Uma das coisas mais legais de trabalhar com outros países e culturas é descobrir as maneiras singulares de olhar para a saúde mental e entender os caminhos múltiplos de cuidado relacionados à cada cultura.
Na Coréia do Sul existe um conceito, o “han”, que expressa uma experiência coletiva de sentir como uma só emoção um conjunto de emoções que vão da tristeza à raiva e envolvem uma sensação de injustiça. Não existe tradução para essa palavra. “Han” é uma emoção que compreende as sensações de perda, de derrota, de desapontamento e de profundo desgosto carregado de certa ira, ocasionadas por algo sentido como opressivo e injusto socialmente, sendo uma violência vinda de fora. O “han” pode ser uma emoção mais geral ou relacionado a algo específico da estrutura social, como o “han” pela condição de pobreza e o “han” por um fato político. Apesar de cada pessoa poder sentir “han”, muitas vezes descrito como algo ‘quente’ e ‘denso’, a emoção não é individual e, sim, coletiva.
Muitos localizam a violenta invasão e dominação japonesa da Coréia e o sentimento perpetrado nessa opressão de que os coreanos seriam inferiores como o momento em que o “han” passou a ser uma característica do povo coreano. Também é dito que esta emoção coletiva está relacionada ao momento da divisão da Coréia em duas.
Agora, vejam só: ao mesmo tempo que o “han” é essa experiência desgastante, é fonte de transformação. Um modo de cuidar para superar o “han” (e este é o termo utilizado: superar) é mobilizar o que o “han” provoca para modificar uma situação, transformando o ressentimento por uma perda em alegria por uma conquista. Os exemplos mais comuns de mobilização do “han” são a organização em movimentos sociais para luta por reformas estruturais e as ações de pais e mães para garantir a educação de seus filhos e superar o próprio “han” da pobreza e da desigualdade (há quem atribua a ‘febre da educação’ nos anos 1980 na Coreia do Sul a isso).
Existem outras formas descritas de cuidar do “han”, como consultar xamãs ou se integrar em uma “ma-eul”, que são vilarejos tradicionais em que as pessoas cuidam um dos outros com base nas relações de vizinhança. Atualmente há quem defenda que é preciso reunificar a Coreia do Sul e a Coreia do Norte para superar essa emoção coletiva e há quem diga que a presença cada vez mais marcante de uma cultura capitalista na Coréia do Sul, baseada no individualismo, na competição e na produção de disparidade econômica, tende a criar sucessivos “han” pelo sentimento de incerteza de um futuro e expectativa de derrota, sendo essa uma preocupação de saúde pública.
Essas variadas formas de cuidado para superar o “han” envolvem, de um modo ou de outro, as relações entre as pessoas em certo contexto e a atenção às emoções presentes, reconhecendo-as para, a partir daí, agir de uma nova maneira. O horizonte é a busca por uma vida permeada por afetos mais alegres e a transformação das condições reais de existência.
O legal de estudar e trabalhar com saúde mental em diferentes contextos é isso: vamos descobrindo as singularidades e multiplicidades nas maneiras de pensar o que é saúde mental e, ao mesmo tempo, vamos nos dando conta de que temos muito em comum.
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